quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Luís Braille deu mais relevo aos horizontes do saber


Com o tema:

Luís Braille deu mais relevo aos horizontes do saber
Louis Braille organizou, sistematizou e articulou as leituras a partir duma lógica que aplicou o princípio da razão, desenhou outro texto, desafiou a gravidade, a geometria e a astronomia; enquadrou o círculo, não se conformou com o cheiro do papel, quis algo mais, o toque não o satisfez, quis algo mais, outra experiência, outro sentido, a música das folhas deslizando terminou por esgotá-lo, o livro e a leitura precisavam algo, acabaram-se os sete dias da criação, a alquimia se diluiu, dissolveu-se, o Braille ia e vinha, passaram os descobrimentos, passou a luz, passou a tinta e o Braille retornou ao papel, acariciou-o, por ele deslizaram também seus dedos…
Paradoxalmente, é a sua própria obra, o que lhe dá estatura, o que lhe dá um lugar na história, o que torna universal Louis Braille, é precisamente o Braille, o sistema de leitura e escrita em relevo. Ao mesmo tempo, de formação singela e genial, a sua obra
não nos deixa ver o homem, o pedagogo nem à criança.
Aqui tento decifrar, ler e reler o que não se falou e o que se diz dele, porque Braille nasceu e se educou na França da Pós-Revolução, na França Napoleônica, na França dos
direitos, das liberdades, da fraternidade e da igualdade, a França racional, lógica,
cartesiana, a França do conhecimento, a do trânsito da alquimia à química, onde as sociedades pré-científicas já configuravam um novo credo, outra verdade, a ciência.
Outro credo, outra verdade, outro paradigma: não há conhecimento, não há lógica nem
razão sem a leitura; sem a escrita, tampouco há produção nem há academia; é essencial ler e escrever, e a gramática não admite revoluções nem revoltas, está feita para engendrar novos deuses, está feita para o gênio e a imortalidade.
Primeiro foi o verbo e depois se fez a luz.
A luz para os olhos europeus se refletia e se refratava, já é azul o céu, é verde
a natureza e o vermelho continuava dando de beber aos campos e às cordilheiras da Europa. A pintura desafiava a bidimensionalidade da tela, do muro, e a realidade se infectava da cromátide, uma das pandemias menos estudada, menos analisada. Afecção, infecção renascentista, filha do ócio, filha do encontro promíscuo do
mito, da lenda e da história, filha da loucura, dos infiéis, do Paganismo, doença
de astrólogos, astrónomos e artistas. A cromátide começou por inflamar a retina, depois desordenou cones e bastonetes; a infecção impulsionou o crescimento exagerado dos cones e reduziu a população dos bastonetes; mais tarde engrossou o nervo ótico e depois intoxicou o cérebro.
Estas alterações levaram alguns seres humanos a configurarem uma nova realidade; e peço licença ao leitor, à ciência e à audiência, por tomar as palavras
emprestadas das sociedades médicas de fins do século XIX, para descrever a estes
seres humanos, porque o produto desta pandemia foram os primeiros autistas.
Este autismo se configurou como uma resposta biológica e somente explicável a partir
da teoria da mente, porque depois de Cervantes, de Shakespeare, de Victor Hugo, de Rousseau, depois de Michelangelo, de Durero, de Rafael e de Tiziano, era impossível voltar os olhos à realidade.
Depois, somente era viável olhar. Da Vinci, irresponsável, abriu a porta do inferno
e em um traço, com uma linha, ao sfumato, equilibrou a luz e a sombra; se não acreditar em mim, repasse o rosto da Mona Lisa, detenha-se na boca, procure os olhos, e somente encontrará enigma.
Agora bem, o que você vai olhar? O que vai fazer agora que pôde ver tudo? O tempo
dos descobrimentos, das conquistas e os conquistadores passou, agora que a Terra voltou a ser redonda e a girar ao redor do sol.
Louis Braille significa para as pessoas cegas acesso ao conhecimento, à possibilidade
de sistematizar, organizar e avaliar a informação; o pensamento, a análise e o discurso verbal se reestruturam no texto, a experiência se retoma e se pensa, analisa-se e aparece o conceito, logo se lê e se confronta o aprendido e apreendido com o tempo.
Aqui devo esclarecer que as pessoas com limitação visual já contavam com algum tipo
de educação, com algum tipo de formação, de arte ou ofício: Mélanie de Salignac não se preocupava por ver, apaixonava-se pela leitura e era fanática da música. Haviam ensinado-lhe a ler com caracteres em relevo, manejava elementos de astronomia, álgebra e geometria. Nicholas Saunderson (1682 – 1739), cientista e matemático inglês, professor de ótica, cego.
Nota: - DIDEROT, Denis, (1749), Carta aos
cegos para uso dos que vêem, Fundação
Once e Editora Pre-Textos, 2002
[em linha] disponível em: http://www.
ddooss.org/libros/Denis_Diderot.pdf,
recuperado: 23 de agosto de 2009.
Aliás, antes de chegar à Escola de Cegos de Paris, o mesmo Louis Braille teve experiências educativas; devemos recordar que naquela época, na Europa ainda dominava a tradição oral, os movimentos da Ilustração, a Enciclopédia e o texto, moviam-se
sob as restrições da Igreja e sob os limites que davam à elaboração do papel, à fabricação
de imprensas, à produção e à distribuição de textos.
Então, a maioria de meninos, meninas e jovens europeus, com ou sem limitação visual,
acediam ao conhecimento e à educação através do discurso oral.
Louis Braille foi a Paris para se aproximar do mundo escrito, foi atrás das regras da gramática, procurou outra forma de ler. E a ponta que trai e cega, a ponta que trai a mão, a ponta fatal retornou, feriu o papel e brotou do génio de Braille a luz.
Seis pontos ordenaram-se em uma fila dupla, o alfabeto, o signo, o significado e
tocamos as idéias, acariciamos Deus, tocamos a geografia; a história já não se desvaneceu no tempo, filtrou-se pelas fendas dos dedos, conhecimento, informação, cidadania, o cisma já não era Lutero repartindo bíblias para que se derrubasse o Sacro Império, não... era o alfabeto dos cegos para construir cidadania e democracia, cegos políticos, cegos cidadãos, cegos racionais, lógicos e informados, direitos de homem, direitos humanos, outra Revolução Francesa mais complexa, mais integral, mais vital.
Com a escrita, os cegos abriram a porta e ingressaram à história. Libertaram-se da palavra do outro e, desde então, a realidade descansou à sombra dos signos, já não da tinta, no mais superficial do alto relevo, no mais fundo do baixo relevo, escrevem-se e imprimem-se experiências, conhecimento e liberdade.
Oliver Sacks nos conta que no livro citado acima, o autor “[…] afirma que os cegos, a sua maneira, podem construir um mundo completo e suficiente; possuem
uma ‘identidade de cego’ completa e nenhuma sensação de deficiência ou insuficiência e que o ‘problema’ da sua cegueira e o desejo de curá-la é,
portanto, nosso, não seu.”
SACKS, Oliver, Un antropólogo en Marte, Editora
Anagrama, Barcelona, Terceira Edição, 2003, pág. 180, N. 1.
Na palavra somos homem e cidadão, estudante e estudioso; com a escritura construímos
a equação do ser elevado ao fazer, e depois a metáfora, e no final o traço impecável, o signo, o inverosímil, a perfeição,
o verbo; o verbo preso no papel, nos tempos do indicativo, pretérito e presente,
o verbo retorna ao caos e ao silêncio… solidão.
Os cegos transitaram da lenda à fábula, atravessaram o ator, o representado, a representação, o atuado, e da direção à perfeição do escritor e culminaram como autores, e a palavra recolheu corpo, biologia, sociedade, cultura e idéia.
O cego escreve e na escrita recupera o olhar e configura um ponto de vista.
O escritor cego realiza a sua leitura da realidade pela palavra e o papel.
O escritor cego no exercício da linguagem captura a sociedade, seu fazer e seu pensar.
O escritor se compromete e, constrói um vínculo solidário com a história participando
politicamente. O escritor assume uma escrita, milita e participa, narra, conta, organiza, hierarquiza, limita e cria um mundo, outra realidade.
O escritor cego abandona as convenções, as formas, deixando atrás o testemunho, o
ator e se aventura no autor.
O escritor renuncia ao jogo, ele faz primeira, segunda e terceira pessoas, renuncia
à cegueira, ao ser e morre em sua obra.
A criança cega, em silêncio, desde a sua solidão põe em ordem o pensamento, estrutura-o,
limita-o, depois o faz energia e movimento, música, escreve; a criança substitui o objeto e a realidade pela palavra; a criança cria o signo e se aproxima ao sagrado. A criança habita o pensamento e a linguagem, desenvolve o seu sistema motor, acontecimentos, história, depois a leitura, os dedos desenham os signos, percorre
um mapa de curvas, uma paisagem lunar, feminidade; desde a leitura, desde a linguagem, desde o encontro com o outro, a criança cega retorna ao pensamento.
Louis Braille e Braille se confundem, misturam-se, e cresce o homem e cresce o sistema de escrita e leitura e se multiplicam e se elevam; e o sistema e o homem se fundem em lenda. Aqui gostaria de atribuir o rosto de uma criança ao pedagogo, ao revolucionário, ao homem que mudou o mundo, que o fez um pouco mais amável e melhor. Hoje, século XXI, o Braille não só aparece no papel, pode ser tocado também nos dispositivos dos computadores, aliás, há um Braille para ser visto, e as pessoas portadoras
de deficiência visual contam com tecnologias da informação e as comunicações. Desenvolveram-se, outros sistemas, outras formas, há mais acesso à informação, às comunicações e ao conhecimento, e o mundo continua crescendo para lá dos horizontes físicos e visíveis.

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